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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Caminhar pelas ruas

Ao caminhar pela rua a passos lentos, sem destino, o rapaz observou os carros passarem. Pensou naqueles que ferem o asfalto, rendidos à urgência. Não que os veículos estivessem rápidos demais, mas quem dirige deseja pular o percurso para apreciar somente o fim. Trata-se mesmo de concluir uma tarefa existencial, pensou. Nunca há tempo a perder. O relógio é o instrumento humano que define a noção de cedo ou tarde, incansável em sua tarefa de enforcar a realidade. Produção cronometrada, agenda cheia e muito a se fazer. “Magros estão os prazos da vida”, refletiu aquele que caminhava.  

Fazia frio e ele decidiu enfiar as mãos nos bolsos da jaqueta acolchoada que comprara em Barcelona na inesquecível viagem de outrora. O dia, como sempre, estava com um aspecto sombrio: as encharcadas nuvens escuras ameaçavam a cidade com as primeiras gotas de água gelada. “Estou mesmo de volta ao Brasil?”, indagou-se. Era a Curitiba típica. Os pensamentos, anuviados, não estacionavam em sua mente por um segundo sequer. Assemelhavam-se ao enxame de máquinas sem vida que avançavam na pista, todas em sentido único, quase automáticas.  Dúvidas desgovernadas trafegavam no plano do pensamento, perdidas no microcosmo do consciente.  

- Ei, maluco. Saia da rua! – esgoelou o piloto enfurecido que guiava um Honda preto cintilante.

O rapaz deu um trote curto e alcançou a calçada do outro lado, ofendido, porém ainda inteiro e um pouco mais atordoado de ideias que chacoalharam na cabeça. O olhar ficou preso ao negror do asfalto e os ouvidos desatentos não detectaram o amontoado de metal desenfreado que se aproximara. “Nada como um pouco de adrenalina para espantar o frio”, consolou-se. Seguiu adiante e deixou para trás o acidente que não aconteceu, imaginando quantas fatalidades a falta de sorte não causa por aí. Mas a sorte, assim como um fantasma, desperta a controversa relação entre fascínio e incredulidade. Poucos são capazes de explicá-la sem se curvar ao misticismo. Os racionais apelidaram a sorte de acaso. “Faltou-me azar, isso sim”, disse o pedestre, intacto, em tom inaudível para o mundo.

Chegou à vitrine esbranquiçada de vapor e o rapaz contemplou as vestes ricas que os manequins trajavam. Molduras humanoides sem cabeça, brancas e negras, com ou sem seios, ornadas com tecidos multicoloridos. Algumas estavam nuas, desafiando os bons costumes dos objetos inanimados. Não tinham cabeças, nenhuma delas. “Criaturas decapitadas ou acéfalas de nascença”, principiou. “Objetos, apenas, que desempenham funções. Luxuosas criaturas sem vida, sem graça. Emulam carne, mas limitam-se ao gesso, plástico... e demais materiais de fácil molde. Não estimulam paixão, não possuem sentimentos, pulsões ou tudo aquilo que nós humanos usamos para nos distinguir de outros seres”, prosseguiu o rapaz, num simples refletir. “Tem muita gente que parece com você, meu caro manequim. Quem sabe eu?”.

Foi-se embora pela calçada esburacada, sem receber resposta, sem um retorno imaginário. Passaram-se lentos minutos e o rapaz retomou o raciocínio frio que o atormentava naqueles últimos dias. “A urgência dos nossos tempos transforma-nos em algo inexplicável”. Mas ele não julgava os demais, pois era também um ansioso por natureza. Chutou uma pedra solta que estava inerte bem perto da borda. Não tardou para um carro passar por cima. Os carros, tão revolucionários itens, recheados com recente tecnologia, atingem rápido um objetivo. Não se desestimulam por emoções e menos ainda são provocados por um surto psicótico. Apenas inflamam combustível e aceleram um corpo sob rodas. Foram eles capazes de definir todo um ecossistema urbano que se replicou pelo mundo. “Impecável, eu poderia ser assim. Mas não passaria mesmo de um mero manequim”, concluiu o rapaz, improvisando um prelúdio de poesia. Já era tempo de atravessar a rua e não pretendia ser atropelado pela pressa alheia.  

3 comentários:

  1. Vejo palavras que logo me levam aos RPG's oriundos deste cranio orinetal.

    Esta mandando bem, Checha!
    Saudade.

    Te cuida, Mermão!

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  2. Bons tempos de RPG. Saudade já do nosso último jogo, que não conseguimos concluir...

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  3. Bons tempos de RPG. Saudade já do nosso último jogo, que não conseguimos concluir...

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