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quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Fim de ano

Túlio adormece por poucos segundos escorado em uma mesa no meio do restaurante. Desperta sonolento, pois descansou pouco na noite anterior, quando festejara reunido à família e amigos a eminência do próspero ano novo. Abre lentamente os olhos e, como num despertar brusco de sonho, é despejado de volta na vulgar realidade. Observa passivo as pessoas ao redor, todas devidamente adaptadas ao verão que explode a cidade e deixa tudo efervescente.

Através das janelas os raios de sol descansam na decoração de madeira enegrecida e gesso pálido concebida propositalmente para aguçar o apetite visual da clientela. Comemora-se ali o vazio da sanidade que nos estabelece o fim e início dos anos. Todos já receberam presentes e também presentearam os entes queridos, mas alguns entusiastas já traçam estimativas para o carnaval e chocolates de páscoa em exercício futurológico.

Um senhor de idade avançada aguarda o almoço próximo do que supostamente pode ser sua neta, uma menininha cuja fantástica essência da infância a deixa cheia de inocência lúdica. Ambos carregam o peso de uma serenidade invejável de quem não quer ou não precisa se preocupar com o futuro. Duas imensas sabedorias em extremos opostos de uma ilusória faixa etária.

Em outro canto, um casal de jovens devora a comida e só cessa de mastigar para trocar palavras que se misturam ao ruído do ambiente. Talvez estejam agendando aquela inesquecível viagem à Europa ou trocando carícias verbais. A felicidade abrigava-lhes com o sentimento provável de paixão ou tudo não passava de simples resiliência, teoriza Túlio em seu vagaroso retorno ao agora.

O assento de Túlio comporta um ponto de vista bastante peculiar. Quase encostado à parede, ele pode com facilidade assistir ao desempenho dos funcionários do restaurante. Assemelham-se a formigas uniformizadas dispostas em linha de produção incessante. O vai e vem de cada um deles só é interrompido por eventuais gritos grosseiros do gerente de controle. Os garçons circulam a passos nervosos, servindo a massa de gente nutrida e curiosamente faminta. Enquanto isso, outros brindam com copos cheios de refrigerante ou suco de laranja, cada grupo em uma pequena ilha social.

Num devaneio de revolução, Túlio imagina os empregados rebelando-se contra o sistema e abandonando a produção de comida. O problema deles, a partir de então, não é mais o gerente, mas sim a matilha de gulosos furiosos que não aceita ficar sem carne mal passada. Compreendeu, enfim, que a indiferença humana é muito mais pesada que o mero poder pontual do chefe estabelecido. Ali morreu mais um pouco do seu marxismo ultrapassado, já que o próprio Túlio impacientava-se com a demora do serviço.

Túlio botou-se a recapitular o ano que se foi. Tinha sido, sem dúvida, de muitas conquistas e vitórias, mas também, como não podem faltar, de frustrações. Mas não era esse o foco da reflexão. O questão central era que Túlio não acompnhava bem essa passagem dos anos. Quanto mais velho ficava, mais rápido o tempo se esgotava. De repente aqueles 365 dias, que antes duravam uma década, não passavam agora de algumas semanas. Encucado, ele pensou que o ano novo envelhecera quase um século durante o fugaz cochilo na mesa. Como a comida não chegava nunca, aproveitou para dormir de novo, mas não sem o receio de acordar em um novo réveillon.       

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