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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Flor e vinho



Nada de nuvens naquela manhã ensolarada de fevereiro. A luz do sol descia limpa e livre até se chocar contra o chão e pintar a cidade em tonalidades de amarelo. Domingo, poucas pessoas pela rua. Apenas os velhos que costumam sempre caminhar pela paisagem urbana ao amanhecer. Os jovens provavelmente estavam adormecidos em suas camas feitas de sonhos, incapazes de aproveitar a brisa matinal.

A Rua Davos era basicamente constituída por um leve amontoado de casinhas pequenas, como se todas tivessem sido construídas pela mesma pessoa. Da calçada irregular brotava uma vegetação diversa que variava entre flores e gramas escarlates. Poucos estabelecimentos comerciais abriam suas portas em dias como aquele. De praxe, somente os mais atentos acreditam em bondade dos clientes no sagrado primeiro dia da semana.  

***

Lázaro desceu a alameda com o seu olhar natural de quem já viveu muitas coisas, mas que ainda tem muitas outras a viver. Dizem que ele tinha lá pelos seus sessenta e tantos anos e sempre amou a mesma mulher: Dona Matilde. Era o dia de seu aniversário, logo Lázaro saiu para comprar presentes dignos à altura de sua única e eterna esposa. Caminhava com as mãos socadas na calça, ombros projetados, olhar leve, distribuindo generosos cumprimentos aos desconhecidos.

Viu, então, a igrejinha que concentrava quase todos os senhores e senhoras do bairro. Seguiu adiante e parou para observar os católicos se dispersarem em famílias pela praça, cumprimentando-se uns aos outros e praticando um pouco de amor ao próximo que acabaram de aprender no ritual. Lázaro convenceu-se de que havia chegado até aquele ponto graças ao seu amor que nutria pela sua querida Matilde. Às vezes, acreditava ser hipócrita, mas gostava mais da alcunha de cristão não praticante.

Entrou no Flor e Vinho, um digníssimo recinto para gente de gosto e retoque sofisticados. Há muitos anos o estabelecimento lucra com a clientela que sai da igreja aos domingos e com os apaixonados que moram pelas redondezas dispostos a investirem na vida galante. A freguesia estava escassa naquela manhã e Lázaro se sentiu mais confortável. Gostava quando podia percorrer os poucos corredores e gondolas sem precisar trombar nas demais pessoas. Deu uma olhadinha pelos lados à procura de algo em específico e avistou a simpática moça que ajudava na escolha dos vinhos. Não era nenhuma profissional da bebida, mas sabia vender um bom produto. Sua simpatia conquistava até o mais bronco dos clientes.  

- Bom dia, Lázaro. Já estávamos esperando pelo senhor.

- Lisa, como vai? Já sabe o que quero, não é?

- Sei sim – Lisa disse com um sorriso celestial estampado no rosto.

- O preferido da Matilde. Hoje é seu aniversário e vamos comemorar. Ela adora aquele com gostinho bem adocicado. Diz que fica alterada só com uma taça – revelou Lázaro. – Por isso não a deixo beber demais.

A moça virou-se para trás e deu uma rápida olhadela nas garrafas que jaziam deitadas em seus lares. Puxou um Seña de safra nobre e entregou nas mãos do homem.

- Este daqui veio direto do Chile. Sua mulher tem muito bom gosto – a jovem elogiou.

- Ela tem sim. É uma de suas várias qualidades.

- Há quanto tempo estão casados, Lázaro?

- Há décadas. Provavelmente já namorávamos antes mesmo de você nascer. E ainda namoramos – Lázaro deixou soltar um sorriso bobo.

- Um dia o senhor precisa me ensinar a fórmula do amor eterno, Lázaro. Hoje os garotos só querem saber de beijar o maior número de meninas possível. Isso sem mencionar aqueles que só querem... – deixou escapar uma vergonha tímida que lhe pintou o rosto de vermelho – Desculpe-me a maneira. Às vezes acabo falando bobeira demais, não dê importância – Lisa franzia as sobrancelhas quase num ato de desespero. 

- Fique tranquila. São apenas meninos, mas tenho certeza que um deles ainda irá conquistar teu coração – disse Lázaro com trejeitos de filósofo boêmio na tentativa de acalmá-la.

- Espero que sim. Dê os parabéns à esposa por mim – ela arriscou.

- Claro.

Despediram-se e Lázaro pegou um novo corredor que desembocaria na área destinada à floricultura. Percorreu uma linha reta cujas laterais estavam tomadas por estantes cheias de flores em vasos de diferentes cores e tamanhos. Pegou apenas uma unidade e dirigiu-se ao caixa para pagar a conta. O homem do balcão usava uma boina escura, óculos embaçados e cultivava um bigode que cobria todo seu lábio superior. Lázaro aproximou-se cumprimentando-o com um forte aperto de mãos.

- Quanto lhe devo, Manoel? – perguntou Lázaro já entregando a quantia exata na mão do amigo.

Manoel depositou o dinheiro no caixa e inclinou-se para frente, apoiando-se no balcão com os cotovelos.

- Só isso que vai dar à sua esposa? Um vinho e uma flor? Você sabe que as mulheres preferem joias de ouro e diamante? – as perguntas feitas por Manoel eram jocosas e despretensiosas, típicas de um amigo que conversa com o outro ignorando o sentido explícito das palavras.

- Tenho tudo que preciso. Matilde não precisa mais de joias. Ela tem a mim.

Ambos riram em uníssono e apertaram as mãos novamente em ato de despedida.  Lázaro botou os pés para fora do Flor e Vinho e retomou sua caminhada pela rua. Atravessou a praça, que tinha sido dominada por alguns poucos ambulantes que aproveitavam para tomar banho de sol ou comprar pipoca para comerem sentados nos banquinhos de pedra. Alguns minutos depois chegou até a entrada de seu lar, uma casa que se assentava grandiosa sobre a esquina. Abriu o portão, apanhou as chaves do bolso e penetrou na residência. Estava plenamente vazia.

Seus passos comprimiram os pisos de madeira que rangeram por toda a casa. Nas paredes o som repercutia-se, assombrando os aposentos. A sala era um baú de recordações. Uma grande estante de cor de carvalho estava recheada de livros de todo tipo: culinária, literatura, histórias infantis e manuais de como vencer partidas de xadrez ou como montar uma cabana. Fotos de diferentes épocas estavam distribuídas cuidadosamente por todo local. Tinha praia, viagens ao exterior, reuniões de família, formatura dos filhos, a história de uma existência inteira. Para Lázaro, eram memórias vivas em sua cabeça que se expressavam em pequenos recortes de papel. Era como se pudesse viajar no tempo todas as vezes que olhasse para os lados.

Foi até uma pequena mesinha redonda que permanecia cravada no centro da sala. Sobre ela jazia uma foto em preto e branco de uma bela mulher que não devia passar dos quarenta anos. Ele tocou a moldura de prata e esboçou um sorriso melancólico. Depositou ali o vinho e a flor e sussurrou:

- Feliz aniversário.   
   

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